Coronavírus e Seguro de Fiança Locatícia

O não pagamento de aluguéis em razão da crise econômica provocada pela Pandemia do novo coronavírus pode isentar as seguradoras de responsabilidade no âmbito dos seguros de fiança locatícia?

 

Breves Considerações Sobre o Objeto, Hipóteses de Sinistro, Riscos Não Cobertos e Prejuízos Não Indenizáveis do Seguro Fiança Locatícia.

O seguro fiança locatícia é uma das modalidades de garantia do locador, prevista no art. 37, III, da Lei 8.245/1991 (lei de locações).

Regulamentado pela Resolução nº 202, de 22 de dezembro de 2008, do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e, atualmente, pela Circular Susep 587 de 10 de junho de 2019, alterada pela Circular Susep 594, de 26 de novembro de 2019, o seguro fiança locatícia tem por objeto garantir o pagamento de indenização, ao segurado (locador), pelos prejuízos que venha a sofrer em decorrência do inadimplemento das obrigações contratuais do garantido (locatário) previstas no contrato de locação do imóvel, de acordo com as coberturas contratadas e limites da apólice.

Esse seguro garante, portanto, obrigações contratuais do locatário, assumidas no contrato de locação, especialmente a obrigação de pagamento dos aluguéis (cobertura básica do plano, de contratação obrigatória), encargos e demais obrigações financeiras. Trata-se de garantia contratual acessória ao contrato de locação, devendo respeitar as suas cláusulas e especificidades.

É importante salientar que o não pagamento do aluguel, por si só, não caracteriza sinistro para fins do contrato de seguro fiança locatícia. O primeiro “inadimplemento” (não pagamento do aluguel) marca o início da expectativa de sinistro, que vai até o sinistro. Este, por sua vez, constitui-se pela inadimplência das obrigações do garantido (não pagamento dos alugueres pelo locatário, por exemplo, e desde que coberto pelo seguro), cumulado com (i) a decretação do despejo; (ii) o abandono do imóvel; ou (iii) a entrega amigável das chaves, nos termos do artigo 23 da Circular SUSEP 587/2019.

Em grande parte das apólices de seguro fiança locatícia comercializadas no Brasil destacamos alguns pontos que se encontram entre os riscos não cobertos, prejuízos não indenizáveis ou excluídos de cobertura: (i) os aluguéis e/ou encargos de locação discutidos ou impugnados pelo garantido (locatário) que não venham a ser confirmados judicialmente; (ii) os aluguéis e/ou encargos de locação que não sejam legais ou contratualmente exigíveis do garantido; (iii) impossibilidade de pagamento em consequência de fenômenos/fatos da natureza ou atos do poder público; e iv) as reclamações de indenização relacionadas com quaisquer alterações no contrato de locação, realizadas sem a expressa anuência da Seguradora.

Não há menção expressa de isenção de responsabilidade securitária ou exclusão/limitação de cobertura ou de indenização para a hipótese de inadimplemento do locatário decorrente de pandemia.

 

A Crise Financeira Decorrente da Pandemia do Novo Coronavírus e o Inadimplemento nos Contratos de Locação.

As regras de isolamento social e de suspensão de atividades de empresas em decorrência da pandemia do novo coronavírus vem resultando em quebras e inadimplementos contratuais de todas as espécies. No caso dos contratos de locação, é grande o número de locatários inadimplentes quanto ao pagamento dos aluguéis e demais encargos financeiros, mostrando-se crescente o número de ajuizamento de ações judiciais buscando a resolução de contratos, a isenção temporária do pagamento de aluguéis e os mais variados tipos de revisão dos contratos de locação.

 

Das Obrigações Essenciais do Contrato de Locação e Possibilidade de Resolução e Revisão em Razão da Pandemia.

A locação é um contrato bilateral, oneroso, pelo qual uma das partes, o locador, cede a posse direta de um bem móvel ou imóvel à outra parte, o locatário, que, por sua vez, paga o aluguel como contraprestação.

Tendo em vista a natureza das obrigações essenciais do contrato de locação acima referidas, embora existam posicionamentos diversos, a boa doutrina (José Fernando Simão) entende que a crise econômica causada pela pandemia do novo coronavírus não pode justificar pedido de isenção do pagamento do aluguel ou revisão do contrato de locação residencial, já que a pandemia não restringe o uso do imóvel pelo locatário. O desemprego ou a redução de renda, ainda que decorrentes de pandemia, não alteram o sinalagma do contrato de locação residencial, não podendo, assim, ser motivo para a revisão do contrato.

Com relação à locação comercial a situação pode ser diferente, haja vista a edição de atos do poder público (leis e decretos federais, estaduais e municipais) que estabelecem regras de isolamento, por vezes privando o locatário de acesso ao imóvel.

Não obstante respeitados entendimentos contrários, a crise econômica provocada pelas medidas de isolamento decorrentes da pandemia não pode ser caracterizada como caso fortuito ou força maior, nos termos do artigo 393 do Código Civil, visto que a impossibilidade de abertura do estabelecimento comercial/empresarial não impede o pagamento do aluguel, restando a prestação de dar (dinheiro) possível de ser realizada, independentemente do estabelecimento estar aberto ou fechado. Se vingasse o raciocínio contrário, isto é, de que a pandemia pudesse dispensar/exonerar a obrigação de pagar o aluguel, pelo mesmo motivo o locatário/comerciante também estaria isento/exonerado da sua obrigação de pagar os seus empregados, fornecedores, bem como todas as suas demais obrigações financeiras, o que levaria ao colapso de todo o sistema econômico-financeiro.

Assim, a suspensão de algumas atividades comerciais/empresariais em razão de atos do poder público que resultem na queda de faturamento e renda é circunstância que pode justificar a busca do reequilíbrio dos contratos de locação comercial, permitindo ao locatário, a depender do caso concreto: (i) a resolução do contrato sem o pagamento de multa ou qualquer outro tipo de penalidade em favor do locador, em razão da onerosidade excessiva (artigo 478 do Código Civil) ou; (ii) a revisão do contrato, buscando o reequilíbrio contratual, nos termos do artigo 317 e, por analogia, artigo 567, ambos do Código Civil (a situação de pandemia/restrições de utilização do imóvel seria análoga à situação de deterioração da coisa).

Nos casos de revisão contratual, buscando o reequilíbrio econômico do contrato, os prejuízos decorrentes da situação de pandemia devem ser divididos entre as partes contratantes (locador e locatário), devendo os percentuais de “abatimento” do valor de aluguéis, bem como moratórias (diferimento no tempo do pagamento do aluguel vencido, sem os encargos da mora) variar conforme as circunstâncias do caso concreto.

Não havendo acordo entre as partes, cabe ao Poder Judiciário (ou à arbitragem) decidir sobre o direito e o alcance da revisão contratual. No Brasil, o Poder Judiciário já vem sendo instado a, inclusive liminarmente (em sede de antecipação de tutela), deferir a revisão de contratos de locação, existindo decisões judiciais de conteúdo variados sobre o tema.

 

Os Posicionamentos dos Tribunais Brasileiros.

Há decisão judicial que determinou, em sede de antecipação de tutela, a suspensão do contrato de locação, até o encerramento do estado de calamidade pública, liberando o locatário de pagar qualquer valor locatício. Como exemplo, a decisão proferida pela Primeira Vara Federal de Curitiba/PR, nos autos da ação nº 5017470-58.2020.4.04.7000.

A maioria das decisões se pauta por deferir, em sede de antecipação de tutela, a redução do valor do aluguel (percentuais de redução variados), inclusive em locação residencial, fundadas na teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva (TJSP – Agravo de Instrumento nº 2092797-63.2020.8.26.0000, data julgamento 10/06/2020; TJSP – Agravo de instrumento n.º 2085590-13.2020.8.26.0000, data julgamento 16/06/2020; TJSP – Agravo de Instrumento n.º 2067001-70.2020.8.26.0000, data julgamento 30/04/2020).

Por fim, constatam-se, também, decisões, onde embora se reconheça que as atividades comerciais do locatário foram impactadas pela quarentena/regras de isolamento devido ao Covid 19, negou-se a revisão do contrato de locação (TJSP – Agravo de Instrumento nº 2070513-61.2020.8.26.0000 – 26ª Câmara de Direito Privado – j. 28/04/2020; TJSP – Agravo de Instrumento nº 2068208-07.2020.8.26.0000 – 34ª Câmara de Direito Privado – j. 22/04/2020).

Destarte, verifica-se que há inúmeros entendimentos, até mesmo antagônicos entre si, prevalecendo a tese de que a crise econômica causada pela pandemia justificaria a revisão de contratos de locação, impondo-se, portanto, a redução temporária do valor dos aluguéis (com base na teoria da imprevisão, da onerosidade excessiva, da boa-fé e da função social dos contratos), embora algumas decisões tenham autorizado a suspensão do pagamento.

Assim, tem-se que a crise econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus, a depender do entendimento judicial para cada caso concreto, pode legitimar o não pagamento de aluguéis por parte de locatários de imóveis.

 

Consequências e Desdobramentos para o Seguro Fiança Locatícia.

É da essência e da natureza do seguro fiança locatícia garantir o adimplemento das obrigações contratuais do locatário, especialmente o pagamento de aluguéis, nos termos e limites da apólice, pelo que, em princípio, a situação de crise decorrente da pandemia, por si só, não modifica ou altera a garantia locatícia, remanescendo ao segurador o dever de pagamento de indenização no caso de sinistro.

 

Não Há Exclusão de Cobertura para Risco de Pandemia nas Apólices Analisadas.

As apólices de seguro fiança locatícia analisadas até o presente momento não fazem menção à isenção de responsabilidade securitária ou exclusão/limitação de cobertura ou de pagamento de indenização para a hipótese de inadimplemento do locatário decorrente de pandemia, de modo que, pela aplicação do princípio da predeterminação dos riscos (artigos 757 e 760, do Código Civil), não podem as seguradoras negar o pagamento de indenizações diretamente com base nesse fundamento.

Verifica-se, também, não caber arguição, pelas seguradoras, de isenção de responsabilidade securitária invocando a hipótese do risco excluído da impossibilidade de pagamento em consequência de fenômenos/fatos da natureza”. Nesse caso, “fatos da natureza”, para fins de isenção de responsabilidade, inserem-se juridicamente no contexto do caso fortuito e força maior (art. 393, do Código Civil), hipótese não existente no caso, visto que a pandemia e a impossibilidade de abertura do estabelecimento comercial/empresarial não impedem, por si só, o pagamento do aluguel, restando a prestação de dar (dinheiro) ser possível de cumprimento independentemente do estabelecimento estar aberto ou fechado.

Não se pode excluir a possibilidade, no entanto, considerando o fato do seguro de fiança locatícia ser acessório ao contrato de locação e o fato de existirem decisões judiciais deferindo, em sede de antecipação de tutela, (i) a suspensão de contratos de locação, com liberação do pagamento de aluguéis pelo locatário; (ii) a revisão do contrato de locação, diminuindo o valor dos aluguéis e (iii) o adiamento do pagamento de alugueis em decorrência da crise econômica provocada pelos atos de isolamento impostos pelo poder público, em razão da pandemia do novo coronavírus, de que as seguradoras, dependendo do caso concreto, legitimamente recusem o pagamento de indenizações securitárias tendo como pano de fundo a pandemia do novo coronavírus.

Nos casos onde efetivamente houver discussão entre as partes do contrato de locação, invocando o locatário, no contexto da pandemia, o “ato do príncipe”, a teoria da imprevisão (artigo 317 do Código Civil) e da onerosidade excessiva (artigo 478 do Código Civil), as seguradoras poderão invocar as seguintes hipóteses de riscos excluídos e não indenizáveis previstas nas apólices: (i) os aluguéis e/ou encargos de locação discutidos ou impugnados pelo garantido que não venham a ser confirmados judicialmente; (ii) os aluguéis e/ou encargos de locação que não sejam legais ou contratualmente exigíveis do garantido; e (iii) impossibilidade de pagamento em consequência de atos do poder público.

Verifica-se que tais hipóteses de isenção de responsabilidade decorrem da acessoriedade existente entre o contrato de seguro fiança locatícia e o contrato de locação, não fazendo sentido o segurador responder pelo pagamento do aluguel se o próprio locatário, garantido, tiver ou vier a ter reconhecido o direito de redução ou liberação do pagamento de tal verba.

Chamamos a atenção, por fim, para o fato de que acordos feitos diretamente entre locador/segurado e locatário/garantido em decorrência da pandemia devem ser informados e anuídos expressamente pela seguradora, sob pena de o locador ter seu pleito recusado pela sua seguradora.

 

 

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